Construtoras têm aviso de sanção por ‘desvirtuar’ prédio de baixa renda

Ao menos 15 empreendimentos já receberam avisos de sanção por indícios de descumprimento de incentivos para Habitação de Interesse Social; empresas dizem seguir legislação
Por Priscila Mengue – editada por Mariana Collini em 04/04/2025
Mais quatro empreendimentos de apartamentos com incentivos para a baixa renda receberam aviso sobre futuras sanções após a Prefeitura de São Paulo reconhecer indícios de que não foram destinados para o público previsto. O número total de edifícios e condomínios com avisos de sanção chegou a 15, mas o volume em apuração pelo Município é maior.
Até o momento, a maioria dos endereços fica em distritos de classe média da zona oeste. Além disso, os condomínios são majoritariamente de microapartamentos e pequenas unidades. Na quarta-feira, 2, a Câmara Municipal aprovou a abertura de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre o tema.
Dos 15 empreendimentos, dois já tiveram os valores da penalidade definido, que somam R$ 31 milhões. Os avisos de sanção – fase conhecida como “despachos sancionatórios” – são a última oportunidade para as empresas se defenderem após outras notificações ao longo de semanas e meses. O número total de empreendimentos notificados é de cerca de 200, segundo a Prefeitura.
Os novos despachos sancionatórios envolvem o Vibe Pinheiros (ligado à Vibra Residencial, do Grupo Nortis), no bairro homônimo, o Hype Style (ligado à Econ), na Vila Leopoldina, e o Six Santa Marina (também ligado à Econ), na Água Branca, todos na região oeste, além do Residencial Alegria, na Vila Ré, na leste.
Ao Estadão, a Vibra Residencial disse ter apresentado a documentação exigida, a qual comprovaria a “conformidade da comercialização das unidades habitacionais com o Plano Diretor e a regulamentação pertinente, reafirmando o compromisso da empresa com a transparência e o cumprimento integral das exigências legais”. Já a Econ não se manifestou, enquanto os responsáveis pelo Residencial Alegria não foram localizados.
Esses prédios receberam benefícios construtivos e fiscais para a construção de apartamentos voltados à população na faixa de até seis salários mínimos. Na prática, contudo, as apurações apontaram falta de comprovação de destinação adequada dos imóveis e, em parte dos casos, indícios de venda e aluguel de unidades para pessoas com maior renda ou em valores incompatíveis para a moradia popular. Todo o planejamento desses imóveis é de responsabilidade das empresas, que ficam responsáveis por garantir que a destinação final seja para a baixa renda.
Nos últimos meses, a gestão Ricardo Nunes (MDB) teria notificado ao menos 200 empreendimentos com casos semelhantes, com denúncias identificadas principalmente após a Corregedoria Geral da Justiça determinar a notificação do Município pelos cartórios e uma investigação de dois anos do Ministério Público de São Paulo (MP-SP). Também está em processo de contratação de uma auditoria, por cinco anos, no valor de R$ 43,7 milhões.
O Município conseguiu recente vitória na Justiça para manter a política de incentivos, enquanto a Promotoria defendia a suspensão temporária até se intensificar a fiscalização. A gestão Nunes afirma que os casos seriam “pontuais” e cita sua “proatividade na promoção de ajustes e aprimoramentos legislativos e administrativos da política pública em questão”.
“Infelizmente, a existência de fraudes é um fenômeno que pode se repetir continuamente, independentemente da ação fiscalizatória do Município. Isso não significa, de maneira alguma, que a fiscalização não ocorrerá”, declarou a Prefeitura à Justiça.
A ação do MP-SP também era vista com preocupação pelo mercado imobiliário. O Secovi-SP e a Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc) apresentaram dados de que a Habitação de Interesse Social (HIS), a grande maioria do total, e a Habitação de Mercado Popular (HMP) representam 75% das unidades aprovadas no sistema Aprova Digital (o principal hoje utilizado pelo Município).
O montante se refere ao período entre janeiro de 2019 e setembro de 2024, totalizando 248.498 unidades residenciais. No mesmo período, sem restrição de renda, foram autorizados 77,7 mil apartamentos e 4,5 mil casas na cidade. Esses empreendimentos obtiveram licença, mas não foram necessariamente entregues.
Na decisão, a Justiça reconheceu a obrigação da Prefeitura em fiscalizar e dar transparência para a aplicação da política de incentivo. “A necessidade de se criarem instrumentos de controle é incontroversa nos autos e restou devidamente reconhecida já nas informações prestadas”, pontuou o juiz Renato Augusto Pereira Maia, da 11ª Vara da Fazenda Pública.
O MP-SP chegou a defender que a Justiça fixasse o prazo de 180 dias para que a Prefeitura averiguasse todos os possíveis casos, mas não foi atendido. Futuramente, também avalia entrar com ações judiciais individualizadas, focadas em empreendimentos com indícios de irregularidades.
No inquérito, a Promotoria aponta indícios de que construtoras receberam incentivos urbanísticos, tributários e fiscais para construir unidades habitacionais para a população de baixa renda, mas permitiram a destinação de parte das moradias a pessoas com renda superior à prevista em lei. Os casos envolvem basicamente unidades classificadas como HIS-2, categoria voltada a famílias com renda de três a seis salários mínimos.
Os incentivos a HIS foram majoritariamente criados a partir do Plano Diretor de 2014, com novos benefícios e ampliações nos anos seguintes. Não há, porém, balanço público de toda a produção desde a implementação. O MP-SP também tem destacado a falta de estimativa sobre a renúncia fiscal resultante dos incentivos. A destinação para o público-alvo é de responsabilidade das empresas, sem a necessidade de atendimento a cadastros sociais da Cohab e afins, por exemplo.
As demais penalidades envolvem empreendimentos ligados a diferentes incorporadoras, construtoras e grupos, como Benx, Cyrela, Canopus, MF7, You,Inc, Tecnisa, Metrocasa, Presence Empreendimentos, Rev³ Incorporadora, Floor e Consthruir. Ao Estadão, a maioria afirmou ter seguido a legislação vigente à época do licenciamento.
Quando anunciou as primeiras multas, a gestão Nunes disse que as empresas “se beneficiaram de isenção de impostos para construir unidades habitacionais à população de baixa renda, mas desvirtuaram o processo comercializando moradias a pessoas que não se encaixavam na modelagem”.
Por enquanto, as penalidades anunciadas são referentes apenas a incentivos urbanísticos, porém construções para a baixa renda também recebem benefícios fiscais e tributários. Esses valores ainda serão calculados.
Além disso, em despachos recentes, a Prefeitura determinou a notificação do Procon para avaliar eventual infração às normas de defesa do consumidor. À reportagem, entretanto, o Programa de Proteção e Defesa do Consumidor do Estado respondeu que não recebeu qualquer comunicação do Município a esse respeito.
À Promotoria, alguns compradores relataram que não foram informados de que tinham adquirido habitação de baixa renda. Além disso, há indícios de que pessoas físicas e jurídicas adquiriram os imóveis cientes de ser uma habitação de interesse social e, mesmo assim, anunciaram a revenda ou aluguel (comum e via plataformas de hospedagem) por valores considerados incompatíveis para essa faixa.
A renda mensal máxima do público atendido é atualizada anualmente, a partir dos reajustes do salário mínimo. Em 2025, o HIS-1 é voltado para famílias com renda mensal de até R$ 4.554 (ou até R$ 759 per capita), isto é, até três salários.
O HIS-2 é para o público de até seis salários, ou seja, R$ 9.108 (ou até R$ 1.518 per capita). Já o HMP é voltado à renda de até dez salários mínimos, hoje de até R$ 15.180 (ou até R$ 2.277 per capita).
O que se sabe sobre os empreendimentos com aviso de sanção?
Denominado oficialmente de Cardeal Arcoverde SPE Empreendimentos Imobiliários Ltda, o Vibe Pinheiros fica na Rua Cardeal Arcoverde, nas proximidades da Avenida Eusébio Matoso e do Shopping Eldorado. O prédio tem cerca de 20 pavimentos, com 183 apartamentos de HIS-2 (três a seis salários mínimos), além de 45 unidades para o público em geral.
“Foram verificados casos de indícios de destinação irregular de unidades utilizando-se os dados presentes nas matrículas das unidades autônomas entregues”, diz parecer municipal.
O documento menciona que três unidades estão no nome de uma mesma pessoa, a qual não registrou os imóveis como destinados à locação para baixa renda. Também aponta que oito apartamentos foram destinados como pagamento a duas pessoas, sem a averbação em matrícula sobre a destinação para locação.
À Prefeitura, a defesa do empreendimento argumentou que não cometeu infração e que “apresentou documentos e esclareceu que todas as unidades HIS-2 foram ou serão destinadas ao atendimento de famílias enquadradas na faixa de renda mensal respectivamente aderente”.
Também defendeu prazo adicional para recorrer. “A empresa não tem qualquer ingerência ou responsabilidade sobre a adequada destinação da unidade alienada para a finalidade de locação pelo seu adquirente”, completou.
Além disso, a Prefeitura identificou imóveis anunciados para venda (até R$ 680 mil) e aluguel (R$ 4,3 mil) por valores descritos como “acima do esperado para a faixa de renda em questão”. A primeira notificação do empreendimento pela Prefeitura foi feita em setembro.
Outro caso é do Projeto Imobiliário DI 45 SP Ltda, divulgado como Hype Style. Fica na Rua Baumann, nas proximidades do Ceagesp.
“As unidades não foram destinadas ao público-alvo, conforme exposto nos relatórios juntados ao processo”, diz parecer da Procuradoria da Secretaria Municipal de Habitação. O empreendimento abrange 752 apartamentos voltados à faixa HIS-1 (até três salários mínimos) e 200 unidades de HIS-2.
“A empresa respondeu a notificação de forma tempestiva, mas não apresentou documentos considerados suficientes para comprovação da correta destinação das unidades”, destaca o parecer. No documento, são destacados casos em que não foram apresentados comprovantes de renda.
À Prefeitura, a empresa disse que os contratos firmados continham cláusulas em que o comprador declarava estar “enquadrado nos requisitos legais para aquisição da unidade, conforme comprovante de renda e demais documentos comprobatórios apresentados” ou se comprometia a “destinar a unidade ora adquirida exclusivamente para a venda ou locação” para a baixa renda.
Além desses dois, o Santa Marina SPE Empreendimentos Imobiliários Ltda. recebeu o aviso de sanção. Conhecido como Six Santa Marina, fica na Avenida Santa Marina, nas proximidades do MIS Experience e da futura estação da Linha 6-Laranja do Metrô. Segundo informações da construtora, o empreendimento tem duas torres, com 267 unidades habitacionais.
Por fim, o Residencial Alegre recebeu aviso de sanção em nome de Ideia Nova Empreendimentos Imobiliários Ltda. Está na Rua Buriti Alegre, na Vila Ré, nas proximidades da Estação de Metrô Patriarca.
“Não foi comprovada a correta destinação das unidades licenciadas como HIS-2 e HMP, havendo indícios de destinação em desacordo com a legislação municipal”, diz trecho do parecer municipal.
O documento cita casos em que a renda estimada a partir do financiamento feito na Caixa ficava acima da faixa do HIS, (chegando a R$ 11,3 mil). “A empresa entregou documentos insuficientes à comprovação de que as unidades foram corretamente destinadas”, completa.
Como tem ocorrido a apuração de casos suspeitos?
No Município, os casos multados começaram a ser apurados há cerca de um ano. A fiscalização tem a participação dos cartórios, que passaram recentemente a notificar a Prefeitura e o MP sobre suspeitas. A identificação envolve especialmente a renda declarada dos compradores.
Os procedimentos de investigação no âmbito municipal foram estabelecidos pela Prefeitura em decreto e portaria no ano passado, publicados após a revisão do Plano Diretor, de 2023. Antes da publicação da sanção, há a apuração preliminar, a notificação do empreendimento e a elaboração de relatório final conclusivo.
Nos processos, a Prefeitura tem alegado que as incorporadoras e construtoras autuadas tiveram “múltiplas oportunidades” de apresentar documentação comprobatória. “A empresa recebeu diversas vantagens (isenção tributária de ISS e isenção urbanística referente à outorga onerosa) para, em contrapartida, alienar as unidades para famílias de baixa renda. Sem que o público-alvo tenha sido atendido, não se justifica a subsistência das benesses legais, como corolário do princípio da proporcionalidade e razoabilidade”, diz a justificativa usada em diversos casos.
Os empreendimentos voltados a esse tipo de apartamento têm descontos e até isenção de outorga onerosa (principal taxa cobrada do mercado imobiliário, que pode chegar à casa de milhões de reais em bairros valorizados). Há ainda diversos incentivos construtivos atrativos para o setor — que favorecem, em especial, construções verticais.
O que o MP critica?
“Essa privatização dos lucros e socialização dos prejuízos é resultado de uma política pública mal formulada e que pode estar gerando vultosos prejuízos ao erário, sendo também fruto, inexoravelmente, da falta de avaliação técnico financeira. Nesse contexto, questões como eficácia, economicidade e eficiência jamais foram verificadas pelo requerido”, diz o MP. “É certo que vem ocorrendo em larga medida”, também assinalou.
Na ação judicial, é mencionada expressão do Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade (Labcidade) da USP: “fake HIS”. Os pesquisadores da Faculdade de Arquitetura de Urbanismo têm falado em “social housing washing”, com possível maquiagem que daria indevida aparência de produção de moradia popular a uma política que incentivou imóveis usados por outra parcela da população.
No ano passado, após solicitar notificação dos cartórios, a Promotoria recebeu, em menos de dois meses, mais de 560 casos de imóveis e empreendimentos suspeitos. “Unidades colocadas à venda pelo mercado imobiliário como HIS e HMP têm metragem (em geral) entre 24 e 30 m², não raras vezes por valor que ultrapassa R$ 20 mil por metro quadrado. Essa tipologia e preço evidenciam-se claramente, em princípio, como sendo incompatíveis com famílias que recebem de três a seis salários mínimos”, aponta o MP na ação.

Foto: Felipe Rau/Estadão